Nesta semana a Câmara Deputados aprovou o projeto de lei que endurece a punição para o abuso de autoridade. Como o texto já havia passado pelo Senado e não sofreu mudanças, segue para a sanção do presidente Jair Bolsonaro (PSL).
A proposta é alvo de polêmicas. De um lado, procuradores e policiais afirmam que pode abrir margem para punir quem combate o crime organizado e a corrupção. De outro, advogados e entidades de defesa dos direitos humanos argumentam que o projeto evita abusos e não pune quem age corretamente.
Abaixo, entenda o que prevê a nova lei.
O que pretende o projeto aprovado pelo Congresso?
O texto especifica diversas condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade e prevê punições. Boa parte das ações já são proibidas, mas o objetivo do projeto é punir o responsável pelas violações.
Que tipo de punições são previstas?
São previstas medidas administrativas (perda ou afastamento do cargo), cíveis (indenização) e penais (penas restritivas de direitos, como prestação de serviços à comunidade ou detenção).
Quase todos os delitos previstos têm pena de detenção —ou seja, o regime inicial será aberto ou semiaberto. A exceção é para o artigo 10, que prevê dois a quatro anos de reclusão (o regime inicial pode ser fechado, mas não é obrigatório) para quem realizar “interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”.
Pelo projeto, uma pessoa que é inocentada na esfera criminal não pode ser condenada na esfera cível nem na administrativa. O texto também prevê que só perderá o cargo ou função quem for reincidente no abuso de autoridade.
Que exemplos de condutas são considerados abuso de autoridade, segundo o texto?
Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem que antes a pessoa tenha sido intimada a comparecer em juízo
Usar algemas em quem não resista à prisão, não ameace fugir ou represente risco à sua própria integridade física ou à dos demais
Invadir ou adentrar imóvel sem autorização de seu ocupante sem que haja determinação judicial e fora das condições já previstas em lei (não há crime quando o objetivo é prestar socorro, por exemplo). Essa é uma queixa recorrente de moradores de favelas, especialmente do Rio de Janeiro, que afirmam que não raro policiais invadem suas casas sem mandado judicial e sem sua autorização
Fotografar ou filmar, permitir que fotografem ou filmem, divulgar ou publicar fotografia ou filmagem de preso sem seu consentimento com o intuito de expor a pessoa a vexame
Dar início a processo sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente
Grampear, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei
Coibir, dificultar ou impedir, por qualquer meio, sem justa causa, a reunião, a associação ou o agrupamento pacífico de pessoas para fim legítimo
Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado
O que torna as condutas criminosas?
Para configurar abuso de autoridade, é necessário que o ato seja praticado com a finalidade de prejudicar alguém, beneficiar a si mesmo ou a outra pessoa ou que seja motivado por satisfação pessoal ou capricho.
Quem poderá ser enquadrado na nova lei?
De acordo com o projeto, são considerados passíveis de sanção por abuso de autoridade membros dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, membros do Ministério Público, membros de tribunais ou conselhos de contas, servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas.
Também pode ser punido quem esteja ocupando a função pública temporariamente ou sem remuneração.
O que é preciso para a lei entrar em vigor?
O projeto segue agora para análise do presidente Jair Bolsonaro (PSL), que terá o prazo de 15 dias para sancioná-lo ou vetá-lo. Ele pode optar por vetá-la integral ou parcialmente, mas os vetos presidenciais podem ser derrubados pelo Congresso.
A norma entra em vigor 120 dias depois de sua publicação no Diário Oficial.
O que argumentam os críticos ao projeto? E os defensores?
Críticos do projeto, como o Sindicato dos Delegados da Polícia Federal e membros da força-tarefa da Lava Jato, afirmam que o texto limita a atividade de combate ao crime organizado e à corrupção e que abre margem para punir procuradores, policiais e magistrados que cruzam o caminho de poderosos.
Já os defensores dizem que o texto é eficiente em identificar e punir o arbítrio e que não impede o exercício das autoridades que respeitam a lei e seguem o devido processo legal. Também argumentam que é necessário provar que houve dolo (intenção) e que interpretações judiciais não são consideradas abuso de autoridade.
Quais os pontos mais polêmicos na avaliação das entidades de classe e parlamentares contrários ao projeto?
Um dos pontos mais criticados pela bancada da bala no Congresso é o que trata de algemas. Já entidades como a Associação dos Magistrados Brasileiros criticam o trecho que torna crime o ato de um juiz ou delegado violar as prerrogativas de advogados caso eles sejam presos preventivamente (o Estatuto da Advocacia prevê que os defensores só podem ser detidos em salas de Estado-maior) e o que torna crime divulgar áudio ou trecho de gravação que não tenha relação “com a prova que se pretende produzir”, “expondo a intimidade ou a vida privada”.
Também são criticados a punição a magistrados que determinarem prisão preventiva sem amparo legal e a classificação da abertura de investigação sem indícios de crime como abuso de autoridade.
Bolsonaro pretende vetar a lei?
O presidente tem sido pressionado nesse sentido. Ele disse que analisará na semana que vem a proposta e que discutirá o assunto com sua equipe ministerial.
Lideranças na Câmara afirmaram ao Planalto que aceitariam suspensão da questão das algemas, mas que outros vetos serão derrubados no Congresso.
De acordo com relatos feitos à Folha, Bolsonaro estaria disposto a também vetar trechos que tratam das prerrogativas dos advogados, em mais um gesto de retaliação à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Quem é responsável por denunciar o abuso de autoridade à Justiça?
O Ministério Público, que é o dono da ação penal. Se o órgão não acionar o Judiciário, a vítima tem o prazo de seis meses para ingressar com uma ação privada, contando da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia. Nesse caso, o Ministério Público poderá fazer acréscimos à ação, rejeitá-la ou mesmo oferecer denúncia substitutiva.
Outro ponto é que, com a nova regra, a denúncia independe da vítima prestar queixa, devendo ser assumida pelo Ministério Público mesmo que a pessoa alvo do abuso não queira dar prosseguimento ao caso.
E se a autoridade denunciada for um membro do Ministério Público?
A regra é a mesma. Advogados consultados afirmam que, em todo o caso, a vítima também pode registrar boletim de ocorrência e procurar a corregedoria ou o Conselho Nacional do Ministério Público.
Como definir, por exemplo, se um preso precisa de algema e se representa ameaça?
Quem vai definir é o policial no momento da detenção. O texto do projeto se baseia em uma súmula do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual só é lícito o uso de algemas “em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”
O projeto aprovado agora prevê detenção de seis meses a dois anos e multa para a autoridade que usar algemas em quem não resista à prisão, não ameace fugir ou represente risco à sua própria integridade física ou à dos demais. A pena é dobrada se o preso for menor de 18 anos ou se a presa estiver grávida. No Congresso, no entanto, o veto a esse artigo já está precificado. A tendência é que o trecho saia da lei.
Como fica a questão da interpretação do juiz?
De acordo com o texto, isso é expressamente intocável e não pode ser criminalizado. O artigo 1º do projeto aprovado diz que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade”.
Antes desse projeto, o abuso de autoridade era punido por alguma lei?
Sim, boa parte das condutas já é vetada por outras legislações. A lei 4.898, por exemplo, definia uma série de ações como abuso de autoridade, mas de maneira genérica e com punição branda.
A nova regra amplia as situações que configuram o crime e torna mais severa a punição (com tempo máximo de detenção chegando a quatro anos).
Há pontos que podem ser questionados judicialmente?
Especialistas consultados pela reportagem afirmam que, no geral, não veem no texto da lei pontos que possam ter a constitucionalidade questionada
Que exemplos de casos da Lava Jato poderiam ser enquadrados na nova lei, caso ela já estivesse valendo à época?
Condução coercitiva – Quando foi conduzido coercitivamente, em março de 2016, o ex-presidente Lula não havia sido intimado a depor na investigação. Com a lei, isso fica vetado
Diálogos – Em março de 2016, por ordem do então juiz Sergio Moro, foi tornada pública uma série de telefonemas trocados entre Lula e outras pessoas de seu convívio, como a sua mulher e filhos. O novo texto pune quem divulgar gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada
Prisão preventiva – A Lava Jato usou em larga escala a prática das prisões preventivas. O projeto pune quem “dentro do prazo razoável”, deixar de relaxar a prisão “manifestamente ilegal, deixar de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou deixar de conceder liberdade provisória quando manifestamente cabível”
Algemas – Em janeiro de 2018, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral chegou ao IML de Curitiba com algemas nas mãos e correntes nos pés. Pelo novo texto, isso seria considerado abuso de autoridade